Ilustração: Valéria Barbosa Paganelli
Texto: Giovanni Rizzo Netto
Esses dias um amigo do trabalho abriu o TikTok, a ideia era ver a primeira coisa que aparecia no feed dele. Em segundos pipocou um vídeo do Ronaldinho Gaúcho. Apenas dribles e mais dribles do R10, embalados por Give me everything (tonight) do Ne-Yo. Combinação genial. Cinema! Meu amigo disse que é seu tipo de vídeo favorito para ver antes de dormir. Vê minutos e minutos do Bruxo até o sono vir. O que é engraçado, porque o João é zero um cara do futebol, se afasta das rodinhas quando o assunto é se o Corinthians vai cair, ou quando alguém se espreme no alt-tab para ver um jogo no meio do expediente. Mas os lances do Ronaldinho ele para, vê, revê, até encontrar o sono.
Alguns dias depois, uma amiga que estudou comigo, que não faço a mínima ideia para qual time torce, ou qual foi a última vez que falou sobre futebol, postou que estava viciada em assistir edits do Ronaldinho Gaúcho. Perdia a noção do tempo vendo esses compilados de lance, se hipnotizava com Ronaldinho, os planos detalhes em suas pernas, os closes do R10 sorrindo, os passes sem olhar, a sambadinha após o gol. Viu tanto que seu algoritmo viciou, agora só tem isso. Agora só tem Ronaldinho.
Aconteceu igualzinho com as minhas redes sociais, mas para mim é meio óbvio, o Gaúcho foi um marco, eu não assistia futebol, eu assistia ao Ronaldinho. É aquele jogador que não penso antes de falar que foi o melhor que vi jogar. Eu respiro aliviado quando num TikTok da vida aparece um desses vídeos. O R10 e sua camiseta grená do Barcelona, com os números escritos em dourados, lances que às vezes não dão em nada, apenas em plástica, naquele edit rápido, curto, de segundos, com aquela imagem HD esticada para caber no espaço vertical. Coisa de outro mundo. As coisas ali parecem simples, parece que não podem mais ser reproduzidas hoje, sem brincadeira, é mágico, é nostálgico.
Acho que esse é justamente o ponto do efeito edit do Ronaldinho na minha geração. Há uma nostalgia de um tempo. Outro dia li sobre um tipo de vídeo que os algoritmos recomendam na parte da noite. Uma câmera estática dentro de um chalé numa área completamente verde, um ambiente amadeirado, luz laranja, lareira acesa, cobertores em uma cama recém feita, lá fora, natureza, barulho de chuva. Tudo o que remete a paz, conforto, tranquilidade. Até o frenético algoritmo recomenda um pouco de silêncio. Calmaria. Nesses vídeos, em algum canto desse cômodo sempre tem uma TV de tubo ligada, nela é exibido um desenho antigo, um episódio de Tom e Jerry muitas vezes. A matéria falava que esse elemento nostálgico traz uma sensação ainda maior de acolhimento. Conforto. Faz com que aquele espaço pareça ainda mais um berço, faz tranquilidade se conectar com a infância, a nostalgia acalma. O elemento do vídeo nesse espaço completamente natural é acolhedor. No meu local de conforto, e talvez no dos meus amigos, estaria passando um edit do Ronaldinho Gaúcho.
Com um vídeo desse, sou levado para uma tarde, onde corro para frente da TV, ligo na Record, vejo o Ronaldinho pegando na bola e ouvir o narrador dizendo “Tá aí Ronaldinho Gaúcho, o showman”. Era esperar para ver o que ele ia fazer, e sempre saía o que ninguém mais faria com uma bola. Show. 90 minutos aguardando ansiosamente para depois ir até o campinho do meu prédio, que no caso era um terreno invadido que não fazia parte do condomínio e a própria molecada se meteu ali para improvisar uns gols, e fingir que era o próprio Ronaldinho. Comentar do Ronaldinho. Falar o que ele fazia ou deixava de fazer. Eu amava aquele campinho, passava mais horas ali do que em qualquer outro lugar. Quando eu aprendi a meditar, tinha uma tática de pensar num lugar de repouso, imaginar ou lembrar de algum ambiente que te trazia para um nível de relaxamento profundo. Eu pensava no campinho do meu prédio. Me imaginava deitado na pequena faixa de grama que tinha nele.
Ali jogava com o Paraíba, o Guilherme, o Vitor da Casinhas, o Victor Pitoco, o Léo, a Pamela, a única menina que se interessava por futebol. Ela era negra, tinha cabelos ondulados na altura dos ombros, s, habilidade na perna direita, batia bem de longe. Logo virou quem? Óbvio, o nosso Ronaldinho. Era a Pamela Gaúcho, o elogio máximo que um moleque podia dar numa quadra no ano de 2006. Mesmo que para uma garota pré-adolescente não fosse o melhor dos apelidos. Mas realmente não era na zoação, não era na sacanagem, Pamela era chamada assim porque era boa, era homenagem. Era uma honra. Ela sabia disso, gostava de futebol. Logo vestiu o apelido, comprou uma faixa branca para prender os cabelos, calçava uma R10 preta, a mesma chuteira que Ronaldinho usava na TV. E Pamela comemorava seus gols exatamente igual a ele: fazia hang loose pros céus. Hang Loose para Deus. Oração que só o Ronaldinho faria.
Lembro até hoje da Pamela arrumando a bola quase no meio do campinho. Afofou a terra, deu quatro passos na diagonal, imitou identicamente o bruxo e bateu. Eu era o goleiro. A bola viajou. Parecia que não ia cair. Viajava sem parar. Eu me jogava, fazia uma ponte sem achar nada e apenas ouvir a bola bater na quina na trave e morrer na rede mal colocada daquela quadra improvisada. Os moleques saíram gritando, é o Ronaldinho Caralho, é o Gaúcho Porra! Ela saiu rindo, fazendo hang loose.
Hoje, o campinho já cimentado vira e mexe recebe uns rachões do pessoal dessa época. Reúne quem já não mora mais no prédio e como sempre foi regra fica aberta para o pessoal que é da rua, amigos de amigos, justo para um lugar que nasceu de uma invasão. Num desses dias, um jogo no meio de dezembro, o calor bateu forte e o abafado combinado com o cimento pintado de azul fez subir um cheiro forte específico. Daqueles que te traz sensações, te joga uma lembrança. Assim como edit do Ronaldinho te transporta. Era cheiro de férias. Era isso que eu sentia. Ri sozinho no gol. Comentei disso com quem jogava e todo mundo sentia a mesma coisa, o mesmo cheiro, a mesma sensação, a mesma lembrança. Foi um pulo, saltar disso para falar de todas as histórias de uns 15 anos atrás. Lembramos do campinho, de como ele se cimentou, de como um foi embora, de como outro foi expulso de casa, de como aquele apareceu com uma arma num dia qualquer, de como eu me afastei depois de ganhar uma bolsa num colégio de boy. Como aquele cheiro rareou. Lembramos da Pamela, que fazia tempo que ninguém tinha notícia, a última história dela já era quando não gostava mais de ser chamada de Gaúcho, por razões óbvias. Por razões de adolescência. Pamela queria deixar de ser um dos moleques, queria ser mulher, queria deixar de ser Ronaldinho Gaúcho. A gente não parou de chamá-la pelo apelido, sem perceber que podia machucar, um dia ela deu um basta, a gente aceitou, a gente cresceu.
Umas semanas depois, um dos meninos, o Léo, mandou uma mensagem: “lembra que falamos da Pamela? Porra mano, descobri que ela faleceu”. Meu estômago revirou na hora. Quase vomitei. Não dormi. Uma leucemia agiu rápido e tirou a vida da Pamela alguns meses antes daquela mensagem, algum tempo antes da gente lembrar dela na quadra de sempre. Sem contato, sem notícia, sem o rastro que há muito tempo a gente tinha perdido, ficamos sem saber. Léo que foi atrás depois das lembranças. Victor, o Pitoco, lembrou que alguém no bar, na frente do prédio, tinha mencionado que a sobrinha de fulano de tal, que achavam que ele conhecia, tinha falecido, ele achou que era engano. Mas era a Pamela, era a Gaúcho, se falassem isso, Victor com certeza lembraria. A gente lembraria.
Essa notícia veio num período em que tive contato com a morte de pessoas mais próximas, todas da minha idade, meio de repente, sem ter sido de forma violenta. Parece que simplesmente se foram. Como de fato é o que acontece. Fiquei mexido. Pensando e repensando. Pela primeira vez parecia que a morte estava perto demais. Não que eu poderia morrer a qualquer momento, mas que simplesmente ela estava ali. Preocupação que tira sono, derruba a gente dos lugares de conforto.
Quando a gente é pivete essa sensação não existe, eu tinha medo que meu pai e minha mãe morressem, mas era medo de ficar sem eles. A morte era só um conceito. A gente na real não tinha preocupação nenhuma. Talvez em crescer, talvez com a escola, talvez com não chegar a tempo do jogo do Ronaldinho Gaúcho, ou pior ainda, descobrir que o jogo do Barcelona não ia ser transmitido na Record, mas sim na ESPN que você não tinha. Preocupações não preocupantes. A real é que a gente nunca percebe quando isso se rompeu, a gente não consegue achar essa peça chave que faz você lembrar quando passou a se preocupar. Quando de fato queria crescer. Quando o apelido de infância passou a se incomodar. Quando queria ser diferente de tudo e de todos, não bastando mais ser o moleque sangue bom que vivia na quadra, buscando agora ser mais parecido com algum grupo da escola de boy. Quando o campinho passou a ser quadra. Quando você não tinha mais tempo para jogar bola. Por essas e outras, em alguma noite a gente acaba recorrendo a um edit do Ronaldinho Gaúcho para ver se nele encontra essa peça que falta.
Agora, mais do que em nenhum momento, o vídeo do R10 me leva para aquele campinho. Para aquele lugar de repouso. Calmaria absoluta. Ali não há preocupação, insônia, não há leucemia, não há morte. Há ainda uma porção de meninos jogando bola. Há uma menina, Pamela. Ela ainda gosta de ser chamada de Gaúcho. Ela ajeita a bola, ali perto do meio campo. Afofa a terra. Dá três, quatro passos na diagonal. Olha para a bola, concentrada. Uma gota de suor escorre. Uma imitação idêntica ao Bruxo. Ela bate. A areia do campinho sobe. A bola viaja, viaja, viaja. Parece que não vai cair… Não precisa cair. Eu sei qual é o final. Como num edit do Ronaldinho tudo termina com um hang loose pro céu.
Sempre impactante.
Que delícia de texto. Adorei, meu irmão